sábado, janeiro 19, 2008

post nº 010

VOLTA DOS TRISTES· (sonhos do Espangara)

(Passeavas com uma bacecola ao lado
E um rádio colado aos teus sentidos
Ouvia-te a gingar, e não era pecado
Devia ter ficado, não te dei ouvidos)

Quando me arrancaram à força do Espangara
Num dia de muita ventania e mau tempo
Levei comigo só a capulana que sempre usara,
Encobrindo-me agora não só o corpo mas também a cara,
Escondendo uma alma despida da força e alento
Desmascarando-se de tudo do que até então se animara
Baloiçando como os barcos que morrem no cais do Manarte
Sem remos, nem âncoras ou amarras, nem a arte
Para reconhecer que já estava moribunda, especada no tempo

Espangara, meu bairro favela, meu vivo artesanato
Eu te recordo tão pequeno, como pequena
Era a porta que se abria numa fresta húmida e serena
Que existia entre este meu mar e esse meu mato

Ladeado pelo mato à esquerda e á direita o mar
Dou início a um sonho de revolta e começo a caminhar
Possuído pela saudade do que já fui e do que já sou
Tentando nunca mais olhar para trás
Passo a passo, vou retirando fotografias dum cabaz
Onde guardo tudo o que o tempo me deu e me levou
Como o campo do Sporting onde, incapaz,
Tantas vezes lá o meu corpo se rasgou
Pelo esforço dos jogos de vida que lá jogou

Para além da vala que me separava dos Maristas
Observei tantas vezes Irmãos de batinas altruístas
Amparando quedas de alunos, de cães pára-quedistas
E no altar do Cordeiro, de Deus… esse Irmão Sacrificado
Pelo legado do amor imenso que ao ensinar tinha doado

Com o Náutico no horizonte
Dobrei a esquina do hospital
E ao fundo daquela estrada que se ligava, feita ponte
Como num abraço, de dedos entrelaçados, ao grande farol
Que a esta distância me parecia pequeno e normal
Porque quanto mais para ele eu caminhava
Mais ele de mim se afastava
Continuando ainda hoje e para sempre a monte

Então, fincando bem os pés na areia, descobri o rasto
Dumas pegadas a caminho dum barco já desaparecido
Que de barco já só era um roto e raso casco
Restos da sombra de alguém que lá tinha vivido

Caminhei pela linha recta que seguia
Em seta arremessada até ao aeroporto
Quedando-me a olhar uns aviões que partiam
Abandonando-me, também eles, melancólico neste porto

Voltei costas à preia-mar, que desde logo se esvazia
Afastando-se rapidamente do grande Régulo
E corri numa largada indistinta e fugidia
De cavalos galopando num hipismo trémulo
Duma chama dançante, fogo-fátuo que tremia,
Reflectida nos olhos dos cavalos já sem luz do dia

Massano de Amorim deu-me boleia até à baixa
À procura dum machimbombo que à pressa me levasse
Para o Liceu, ou para a Escola, que tanto me fazia
Pois só chegar lá era tudo o que eu mais queria
Para me perder a estudar, mais uma vez, na grande vala
Que o Liceu à Escola tanto separava como unia.

Foi então que me lembrei da casa Bulha
Que lá tudo havia, lá tudo se vendia
E machimbombos também lá paravam
À espera de mim, na minha paragem
Com o passo apertado e lento, a muito custo,
Corri louco, como se fugisse dum susto
Por já lá não se venderem bilhetes de passagem

Abri os olhos, encarnando um pássaro que voava
Por sobre o Município deserto e agora seco
Pois embora as fontes ainda deitassem água,
Hoje já não me atingiam nem molhavam
Já nem se ouvia o eco do “já lá vai”, marreco
Vergado pela mística corcunda, feia e rela
Surgindo sempre à socapa de qualquer beco
Para que tivéssemos sempre muita cautela,
Cautela que me vendeu um dia por vinte paus e me jurara
Aí e então, que algum dia haveria de me sair o ganho
No mesmo dia que me evadisse da favela
E deitasse fogo à cubata do meu Espangara.
Agora… já nem cubata nem cautela tenho.

Fiz à Catedral um envergonhado salamaleque
Porque em frente ficava a Eduardo Vilaça
E ao lado o Eduardo Brasão, onde tantas vezes por pirraça
Se ensaiavam umas peças de teatro e se namoravam
Meninas do corpo de baile ao som do calhambeque

Passei mudo pelo pavilhão da minha mocidade
E liguei-me aos sons que ainda lá ecoavam
“Cesto” e “golo”, “atira” e “passa a bola” alternavam
Com a lucidez que nas minhas memórias provocavam
Ouvi-los repetidamente à distância desta idade
De reconhecer, que tanto lhes tive ódio como amizade
E de agora saber que já lá não mais jogavam

Gritei por “São Jorge” que me poupasse
A pesada cruz que agora carregava
Se seguisse em frente, a Ponta-Gea avisava
Que virasse à direita para onde o mar marulhava
E que, viesse o que viesse, que passasse
Pelo Grande Hotel mesmo que ele me olhasse
Com olhos de defunto que junto ao mar se abandonava

Vizinho que tantas vezes te olhei sempre novo
E agora te vejo envelhecer pelas necessidades dum povo
Que nas tuas entranhas vive e sofre até não mais poder
Deram-te uma amarga vida um dia, meu imponente amigo,
Agora é a tua vez de vida amarga dares ao morrer.

Agora sim, já sei por onde ir, que este sonho é só meu
É pela marginal que ainda existe entre o Crente e o Ateu
Que divide a terra do Miramar, onde o Veleiro finda,
E a Praia dos Pinheiros com lágrimas da Praça da Índia

E aqui, bem no centro da rotunda, por fim reparei
Que estava quase no ponto do meu sonho de partida
Sim que de meu sonho se tratava… sem vivalma
Tendo levado somente comigo a saudade ofendida
Para dar uma volta aos tristes trastes da minha alma
E finalmente voltar para onde nunca devia ter saído
À palhota do Espangara, suado e cansado
Por ter saído sem nunca de lá ter partido
Por hoje retornar sem nunca lá ter voltado

(Ainda passeias com uma bacecola ao lado
E um rádio colado aos teus sentidos
Ouço-te a gingar, nunca foi pecado
Devia ter ficado, não te dei ouvidos)


Jone Chipângua
(que, como já sabem, é meu amigo)

2 comentários:

Madalena disse...

Posso apanhar esse machimbombo, Jorge? Que saudade!

Jorge Coimbra disse...

Madalena Santos. Obrigado pelo "comment". Queres apanhar o machimbombo... deves ser da Beira. És? Conheço-te? Jorge