domingo, janeiro 20, 2008

post nº 014

PALAVRAS VADIAS

Vadio pela vida como um solilóquio, e só com ele converso
Palavras soltas ao sabor dos ventos de destinos que não entendo
Agarram-se umas às outras, com o terror de rima que perde o verso
Palavras entrelaçadas nas várias línguas que não falo, mas pretendo
Palavras loucas que ninguém ouve, espelhos que reflectem o inverso
Do que dizem, amedrontadas pela coragem do seu próprio lamento.

Vadio pela vida como a pedra que um Deus certo dia levantou
Do fundo dum lago lamacento e que, com destreza, arremessou
Por sobre as águas, saltitando, em arcos cada vez mais rasantes
Cada vez mais curtos, monossilábicos, agressivos, inquietantes
Até que ao fundo do lago voltou, e sob a mole lama aguardou
Que um outro Deus a voltasse a pegar, levantar e arremessar

Vadio pela vida como um animal selvagem ferido de morte
Um animal sem matilha, numa migração que perdeu o norte
Ferida pingando sangue na neve, pelo degelo que lhe rouba o fio
De água que lambe e bebe mas devolve, quase toda, ao rio
Fio da baba que lhe escorre da boca, já sem palavras
Porque também elas vadiam, feridas de sortes macabras

Vadio ao acaso, como palavras casualmente impensadas
Como aparas de madeira que caem duma serra, ao calha
Como orvalho que congela em manhãs frias, condensadas
Pelo hálito quente que fumega da boca aberta pela navalha
Os lábios finos, sangradas fissuras pelo golpe da facada
Fecham-se como as asas que mantinham a minha alma alada

Agora já só me calo se não constar nos anais
Que fiquem calados os que demais falam
E se o calar é fácil para os que se calam
Consentem que eu fale até não não poder mais

Jorge Coimbra

Sem comentários: