domingo, janeiro 20, 2008

post nº 013

O MENINO DO MUSUNGO

O menino é um branco criado no Chipangara (bairro pobre da Beira, Moçambique), onde a própria lata, o caniço e o matope, se misturavam com a pedra e a cal, sem preocupações.

O contador é o Jone Chipângua, meu amigo íntimo, de peito, que comigo se confundia.

O Jone conta baixinho, quase em segredo...

Era uma vez... – Que todas as histórias só devem começar assim –...

Era uma vez… Um menino filho de musungo, por isso era branco. Vivia no Chipangara, por isso era negro. Dava-se bem com todos, por isso era mulato.

Tinha, na altura desta história, 7 anos bem medidos. Era a idade de subir coqueiro, comer caju do chão, andar de baloiço no ramo do tamarindeiro, pescar cacana e mussopo no rio Chiveve...

Chiveve, rio que morria onde devia nascer, terra adentro, passando pelo Chipangara.

Todas essas árvores, ele tinha no quintal do seu pai musungo, portanto branco.

Era feliz. Gostava da vida e a vida gostava dele.

Ia à praia da Praça da Índia com a mãe.

Com o pai... bem, musungo não dá mesmo troco a quem é branco, negro e mulato ao mesmo tempo. Musungo é assim. Musungo dá ordens!

Musungo falou... (faça-se um “entretanto”)

Entretanto… tinha nascido lá em casa, da cadela rafeira "catita", 5 ou 6 cães rafeiros, que não tinham sido chamados à vida pelo musungo.

O menino queria-os, como qualquer criança quer, com alma, com paixão, com amor ainda tão inocente.

Mas musungo é que manda! E mandou... (fim do “entretanto”)... :


"Filho, enquanto eu for trabalhar, pegas em todos os cães, todos, ouviste? Mete-os num saco e levas até ao Chiveve. Deita-os à água e vens-te embora".

E lá foi com a sua "solex", que musungo tem mota e dá recados para serem cumpridos.

O menino sentiu-se desfalecer. O menino olhou para o pai antes deste partir e não o reconheceu. O menino caiu de joelhos no chão.

Sem saber o que era isso de ser Cristão, ajoelhou e chorou como nunca tinha chorado. Sem saber rezar, orou pela vida, num choro compulsivo, num imparável correr de lágrimas que lhe faziam arder os olhos com o sal da sua dor.

A cadelita rafeira veio para junto dele e deu-lhe umas lambedelas na cara, sarando as feridas que as lágrimas faziam. Era assim a "catita". Amiga do seu menino, mesmo que ele fosse matar os seus filhotes.

O filho do musungo sentiu-se rafeiro. Olhou para a mãe, que, impotente, tinha perdido o dom de falar, como tantas vezes o tinha feito, para sossegar o seu querido, e único, filho. Também ela queria ir no saco com os cachorros.

Mas o menino branco, negro e mulato foi, que musungo não admite falhas. Meteu os 5 ou 6 cachorros (que naquele torpor, até lhe perdeu a conta), com 7 ou 8 dias de vida, num saco, no mesmo saco que pertencia ao "homem do saco", história que lhe contavam para ele comer mais depressa.

O menino correu pela rua fora até ao rio Chiveve, onde tantas vezes tinha pescado caranguejos com o musungo seu pai. (Aro de bicicleta, uma rede em forma de saco, uma corda, carne apodrecida... enfim, quem não sabe como era?).

Correu rua fora, passou pela cantina do Senhor Dias, Que lhe dava doces verdes, arredondados como melões, tão bons... fazendo-se esquecido das diabruras e partidas que o menino lhe pregava. Ao passar em frente da cantina gritou “desculpa Deus!”, pois julgou que este era o castigo que Deus lhe estava a dar pelas partidas e diabruras.

Agora, levava o crime nas mãos e a amargura no coração.

Chegou ao rio Chiveve e parou sobre a ponte velha de madeira.

O grande Chiveve ia cheio, que a maré tinha subido. Estava a três escassos palmos da ponte.

O menino parou, e com ele o tempo parou. Como se o mundo todo o estivesse a recriminar, os sons todos pararam, parecendo que o estavam a olhar de todos os lados.

Tudo parou.

O menino, num esgar de raiva, de sobrolho cerrado e olhos molhados, atirou com os cachorrinhos à água.



De repente o menino ouviu o que o mundo lhe dizia em silêncio. Aproveitando a paragem no tempo, correu para o outro lado da ponte.

O Chiveve corria para onde o mar o levava. Sorte que a maré estava a subir. Sorte que não era maré de morte.

Conforme os cães iam boiando, agarrando-se à vida, e passando por baixo da ponte, o menino ia-os apanhando do outro lado... Um a um, 5 ou 6, molhados pela maré do Chiveve, encharcados nas lágrimas do menino daquele musungo, são e salvos pela maré que fez desobedecer o rio Chiveve à lei natural dos rios, a de correr para o mar.

Rio e menino desobedientes.

E, no mesmo repente, o mundo começou a mexer-se outra vez. Vêm pessoas de todos os lados… seres humanos!

"Eu ficas com os cão. Dá uns cão para mim. Eu gosta dos cão!".

E estas 5 ou 6 vozes levaram os 5 ou 6 cães para serem seus, para serem seus… e de estimação.

Seres humanos.

O menino voltou para casa, já sem os cães, já sem o saco, que nesse dia o "homem do saco" perdeu o saco para todo o sempre.

O menino não chorou mais nesse dia. A mãe chorou por ele. O pai musungo sentiu um grande orgulho nele. O menino só chorou mais tarde, com medo de, frente ao musungo, trair a mentira.


FIM

Jorge Coimbra (pp Jone Chipângua) ou vice-versa.

PS: O menino, agora já mais crescido, recorda com saudade as memórias que o Jone lhe confidenciava em segredo: “O homem negro trata bem os seus animais”, dizia. “Se por acaso vires um cão magro, com as costelas a descoberto, pertencendo a um homem negro, não é porque este o trate mal. Se vires bem, o homem negro ainda é mais magro, pois divide a fome do cão consigo”.

Muito obrigado Jone Chipângua.

Chipangara – Bairro pobre da Beira, Moçambique.
Matope – Lama negra.
Jone Chipângua – Um contador de histórias.
Musungo – Patrão, chefe (à laia de “Sahib”).
Cacana – Peixe de rio.
Mussopo – Peixe de rio.
Chiveve – Braço de rio, que nascia no mar, e que, ainda hoje se diz, tem poderes mágicos para quem dele beber ou nele cair. Eu fiz ambas as coisas.
"solex" – Moto com pedais e motor em cima da roda dianteira.

1 comentário:

Anónimo disse...

Muito bonito